quinta-feira, 20 de junho de 2013

A Educação Inclusiva: incompletudes escolares e perspectivas de ação

O artigo refere à proposta de educação inclusiva, sob a perspectiva do paradigma histórico e também sob o prisma das mudanças que ocorreram nas políticas educacionais brasileiras, notadamente através da priorização da educação inclusiva com a LDB 9394 de 1996. Elege alguns autores e fatos históricos no contexto da evolução de uma educação especial sob a égide do paradigma médico para seu resgate pedagógico, culminando com a proposta da educação inclusiva. Também insere o paradigma vygotskiano como inspirador para muitas das idéias acalentadas e construídas no bojo desta proposta. Diante de questões formuladas sobre atitudes, experiências e a avaliação sobre a proposta da educação inclusiva, alguns dos resultados são: a) o sentimento de desafio e a busca por apoio pedagógico; b) um projeto com demandas direcionadas à transformação da escola; c) a importância da prática e da formação continuada; d) a importância do apoio da equipe pedagógica, do intercâmbio entre professores e da composição favorável da infra-estrutura escolar; e) a conscientização ainda débil da comunidade escolar sobre o projeto de inclusão escolar.


Palavras-chave: educação inclusiva, incompletudes escolares, concepções de professores.

1 - Introdução

O paradigma e a política da educação inclusiva constituem-se como processos claramente delineados na história da educação especial. Há aproximadamente quatro décadas que as idéias integradoras, consubstanciadas no pensamento da não-segregação das pessoas com deficiência no ambiente escolar, vêm inspirando uma série de propostas e ações em vários países do mundo.

A proposta inicial da integração escolar evoluiu para uma concepção de inclusão escolar, embora tal diferenciação ainda não tenha ganho unanimidade na comunidade acadêmica internacional bem como nos sistemas educacionais. Subjaz o conceito diferenciado na proposta de inclusão de uma ação mais efetiva do sistema educacional como um todo no sentido de garantir (obviamente, não a qualquer custo) a inserção e permanência do aluno com necessidades educacionais especiais na escola regular.

De qualquer forma, há países que não empregam a expressão inclusão escolar (ou educação inclusiva), utilizando ou mantendo o conceito de integração escolar, porém com acentos teóricos e práticos semelhantes. Um exemplo disso é a Alemanha, cuja “pedagogia da integração” (Integrationspädagogik) existe historicamente desde meados da década de 70 e evoluiu ao longo de reflexões acadêmico-científicas e de várias experiências escolares1.

O Brasil adotou com a LDB 9394/96 a proposta da integração escolar preferencial de alunos com necessidades educacionais especiais. De lá para cá houve um processo intenso de análise e transposição do projeto político-pedagógico para as diferentes realidades escolares, tanto nas redes de ensino público como na particular.

O que se constata, porém, nesses últimos anos, na repercussão do confronto entre a legislação educacional e estas realidades é o sentimento de incompletude, para não dizer impotência, das redes de ensino em geral, e das escolas e professores em particular, para fazer cumprir esta proposta. Esses últimos julgam-se, na sua grande maioria, despreparados para atender alunos com necessidades especiais: falta-lhes a compreensão da proposta, a formação conceitual correspondente, a maestria do ponto de vista das didáticas e metodologias e as condições apropriadas de trabalho (por exemplo, uma carga horária insuficiente e/ou turmas numerosas de alunos). A maioria das/os professoras/es já em experiência de educação inclusiva mostram níveis preocupantes de stress (veja, a respeito, Naujorks, 2002), principalmente devido à inexistência de uma formação anterior visando a capacitação para o ensino desse alunado.

Mas não são apenas as/os professoras/es que se percebem, de certa forma, impotentes. Também a escola como um todo (equipe pedagógica, recursos materiais, funcionários/as de apoio, etc.) vê-se como tal. Um dos questionamentos que se escuta com freqüência é o seguinte: se já é difícil atender a heterogeneidade do alunado “tradicional”, com tantos casos de alunos em condições precárias de aprendizagem, ameaçados, potencialmente, de fracasso e exclusão escolar, como a escola poderá dar conta da demanda extra do atendimento dos alunos com deficiência? Tal interrogação é um sinal evidente do despreparo das escolas para converterem o projeto da educação inclusiva em um ato operacionalizável.

Além do mais, as próprias famílias e os próprios alunos, sejam os ditos normais ou com necessidades especiais, muitas vezes, são tomados de surpresa diante desta proposta. Talvez muito mais as famílias dos alunos ditos normais demonstram atitudes que oscilam entre desconhecimento da proposta até rejeição a ela. Intimamente, existem sentimentos nas famílias de medo ou ansiedade diante do que a convivência com alunos com deficiência pode significar para a formação dos seus filhos.

Assim, constata-se, em geral, nas realidades escolares, seja no âmbito das escolas públicas como nas particulares, um quadro de apreensão e insegurança diante do projeto político-pedagógico da educação inclusiva.

A teorização que se segue e os dados de pesquisa apresentados fundamentam e decorrem das pesquisas conduzidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Integração/Inclusão Escolar (GEPEI), grupo cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e localizado institucionalmente na Faculdade de Educação da UFRGS.2

O GEPEI propõe estabelecer uma ponte – acadêmica, científica e educacional – entre a Universidade e a escola. Objetivo primordial é, além do estudo de determinadas realidades escolares, tendo em vista a averiguação das incompletudes diante da proposta da inclusão escolar, estabelecer uma contínua interlocução com as escolas envolvidas na pesquisa, no sentido da construção de estratégias de ação junto aos educadores, alunos e famílias, que possibilitem a implementação gradual do projeto de educação inclusiva.

Este objetivo geral subdivide-se nos seguintes objetivos específicos. O GEPEI propõe, assim, com o projeto de pesquisa que se encontra em execução (ao longo do ano de 2003 e com continuidade em 2004):

1- Investigar realidades escolares que se encontram confrontadas com a demanda – fatual e legal – do atendimento de alunos com necessidades educacionais especiais.

2- Dialogar e propor alternativas de ação às escolas.

3- Averiguar nestes contextos os espaços de aplicação dos conceitos da escola sócio-histórica russa (Lev Vygotski).

2 – Alguns referenciais teóricos

O aspecto principal, “carro-chefe”, das reflexões que seguem é a temática da educação inclusiva. A abordagem de Vygotski é agregada - certamente não de forma secundária – por a considerarmos profunda e fértil tanto pelos seus conceitos fundamentais, em boa medida gerados e amadurecidos no contexto do trabalho de Vygotski com pessoas com deficiência, como pela precoce atenção que deu à temática da integração. Assim, a seguir são considerados ambos aspectos, primeiramente a questão da educação inclusiva, em seguida, a abordagem vygotskiana.

2.1 – Educação especial e educação inclusiva

A educação especial tem passado, nos últimos anos, por fortes mudanças de caráter paradigmático e concernentes às políticas públicas, no contexto nacional e internacional. A mudança mais significativa é aquela que aponta para a necessidade de enfraquecer processos de afastamento da convivência em sociedade das pessoas com deficiência. A história do cuidado ou destrato destas pessoas foi, com freqüência, marcada por situações de isolamento social (confira uma análise pormenorizada em Foucault, 1995, 4ª ed.). Ou, em outras situações, como a da educação de Vitor, o menino-lobo, o desafio enfrentado por Itard (veja Banks-Leite et alii, 2000), aceitando a educabilidade deste menino contra a dominante opinião médica de Pinel. A partir deste fato histórico, há um marco significativo no tratamento diferencial de pessoas consideradas “desviantes” em seu comportamento. Estas não são mais sujeitos da segregação, porém passam a ser consideradas como possuidoras de possibilidades não exploradas para interagir nos espaços sociais considerados “normais”.

Então, dos meados do século XIX, atravessando o século XX, presenciamos na história da educação especial um desenvolvimento marcado pelo reconhecimento e aceitação gradativos dos direitos das pessoas com necessidades especiais. Tal movimento, porém, deu-se sob a égide da ciência médica. As construções das outras áreas (psicologia, educação, etc.) na consideração das especificidades dessas pessoas como objetos de suas ações deram-se sempre sob o viés disciplinar médico.

Assim, na psicologia convencionou-se avaliar a condição intelectual das pessoas com deficiência e determinar sua condição de (super) ou (sub)dotação intelectual, classificando alguns como intelectualmente superdotados, outros como subdotados, dentre esses últimos alguns com condição de educação formal, outros ditos treináveis, outros apenas passíveis de cuidados básicos (os chamados dependentes). A categorização clínica do sujeito, através dos parâmetros referenciais da normalidade intelectual (QI 100?), passou a determinar suas chances de educação formal ou de escolarização. As crianças com um quadro de deficiência “leve” poderiam ser educadas nas escolas regulares, enquanto que as demais seriam atendidas nas escolas especiais. O disciplinamento médico, com categorias “terapêuticas” de cuidado e isolamento, ditava inclusive as normas pedagógicas.

Determinados autores do século XIX apontavam nitidamente para a influência da ciência médica na educação especial (naquela época, denominada como “pedagogia terapêutica”). Por exemplo, Friedrich H.C. Schwarz, no “Manual da Educação e do Ensino” (1805), ao comentar sobre a então nova área denominada “Pedêutica” e “Terapia Pedagógica”, escreveu: “A analogia com a terapia física é muito palpável ... (Esta seria) tarefa principal da educação, de fato não a menos importante”. (apud Bleidick, 1981, p. 255) Outros autores preferiram criar outra interface com a medicina, no caso entre a psiquiatria e a pedagogia, enfraquecendo enormemente as categorias pedagógicas. Por exemplo, Düring, Isserl e Stutte definiram a pedagogia terapêutica como “psiquiatria aplicada”. (apud Bleidick, 1981, p. 256)

Houve, entretanto, posições antagônicas a esta situação de esvaziamento das categorias pedagógicas, ou de reducionismo clínico dos referenciais pedagógicos. Moor (apud Bleidick, 1981, p. 256), autor daquela época, afirmava que “nunca as constatações médicas obtêm significado fundamental para a educação. ... Objeto do conceito pedagógico terapêutico é a tarefa pedagógica e não mais o fato médico”. A informação médica poderia apontar para as variáveis intervenientes no quadro de deficiência, porém jamais servir de premissa independente para a decisão pedagógica.

A predominância do paradigma médico não foi exclusividade do século XIX, porém atravessou, hegemonicamente, boa parte do século XX, e, não é exagero afirmar, que, até hoje, isto é, nos primórdios do século XXI, mantém-se a dominância da área médica na educação especial.

Mesmo se verificando tal dominância, nos últimos 40 anos novos enfoques começaram a se desenvolver em alguns países, cujas bases assentavam-se sobre pressupostos divergentes daqueles emanados dos conceitos clínicos. Assim, ainda na década de 60 ocorreram as primeiras experiências de integração escolar de crianças com deficiência. Os Estados Unidos, também, começaram a enfatizar a possibilidade do atendimento educacional de alunos com deficiência na escola regular. A partir dessa década, outros países no cenário europeu passaram a voltar-se para a possibilidade ou idéia da integração escolar, mais intensamente a Itália. Na década de 70, a comissão de reforma do sistema educacional inglês, presidida por Mary Warnock, definia a necessidade da revisão de conceitos fundamentais da educação especial. Surgia, em 1978, o conceito de special educational needs, ou necessidades educacionais especiais, cuja idéia básica assentava-se sobre a necessidade de reconsiderar as práticas de conceitualização das deficiências, provocando uma profunda mudança nas formas de analisar a problemática das pessoas com deficiência.

Assim, do enfoque ontogenético – a deficiência potencializada através de um processo de substantivação, em que o sujeito passava a ser interpretado, avaliado e qualificado por meio da sua deficiência, gerando o conceito de deficiente3 – passou-se a valorizar as diferentes singularidades de cada sujeito, sendo que suas limitações começaram a ser compreendidas como circunscritas no tempo e no espaço e definidas muito especificamente. Em decorrência desta abordagem, os “deficientes” passaram a ser gradualmente considerados como pessoas com necessidades especiais, ou com necessidades educacionais especiais, necessidades estas que de maneira alguma comprometem a dignidade e o valor da vida humana. Em termos paradigmáticos, pode-se apontar para uma mudança de paradigmas, do clínico-médico para o sócio-antropológico4. O foco analítico das variáveis intervenientes nas situações de deficiência, isolamento social e fracasso escolar sofreriam um deslocamento fundamental no sentido de que não mais o indivíduo seria o principal responsável por estas situações, porém a sociedade como um todo.

As propostas de integração, inicialmente, e inclusão escolar, posteriormente, dos alunos ditos com necessidades especiais surgiram em decorrência de tais transformações paradigmáticas no cenário internacional da educação especial. Enquanto o paradigma médico fomentou, ao longo de décadas, o isolamento dos indivíduos com deficiência, penetrando no séc. XX e orientando a supremacia do pensamento terapêutico em relação ao pedagógico, fazendo sobressair, assim, a idéia de escolas especiais para os alunos portadores de deficiência, o avanço do paradigma sócio-antropológico fez germinar idéias de desguetização desses alunos. Estas idéias traduziram-se nas propostas de integração e inclusão escolar.

Conforme visto acima, alguns países no cenário internacional emitiram os primeiros sinais de sensibilização em relação às novas idéias, amadurecendo-se as mesmas e, como que num efeito dominó, produzindo impactos significativos na forma de enxergar a educação dos alunos com necessidades especiais praticamente em toda Europa. O ápice desse processo deu-se com o encontro internacional em Salamanca, na Espanha, em 1994, resultando na Declaração de Salamanca, documento cujo marco representou avanços globais inequívocos quanto a projetos político-pedagógicos de educação inclusiva.
No Brasil, ao longo da década de 90, estas idéias fizeram-se sentir com muita clareza, ganhando espaço gradativo nas ponderações acadêmicas, nas discussões da comunidade escolar, e, finalmente, nas gestões políticas educacionais nos âmbitos municipal, estadual e federal. Como resultado desse processo, a LDB da Educação Nacional de 1996 (Capítulo V) definiu como prioridade o atendimento educacional de alunos com deficiência ou com necessidades especiais no sistema regular de ensino. Tal política de integração escolar, com seu aprofundamento através da proposta de inclusão escolar, começou a gerar acalorados debates em torno das viabilidades operacionais, diante das muitas incompletudes do sistema educacional brasileiro.

E este é o momento em que vivemos no país. Parece-me claro um forte anacronismo entre as pretensões legais (isto é, das políticas educacionais), com evidente priorização do paradigma da educação inclusiva dos alunos com necessidades educacionais especiais, e a realidade do sistema escolar brasileiro5. Esta mostra escolas despreparadas para lidar com classes inclusivas, falta de materiais adequados, professores com poucas condições (sem falar no aspecto motivacional) para atuar diferencialmente em sala de aula com alunos ditos normais e alunos com necessidades especiais, etc.

2.2 – A abordagem sócio-histórica como prisma de consideração das realidades escolares

Dentre as teorias da aprendizagem e do desenvolvimento cognitivo, o pensamento de Lev Vygotski destaca-se pela ênfase que dá aos fatores psicossociais como determinantes nas condições de aprendizagem e desenvolvimento infantil. Para Vygotski, duas dimensões afetam o desenvolvimento humano, não apenas evolutivamente, como também ontogeneticamente, ou seja, a dimensão biológica ou orgânica e a social (cultural) ou histórica.

Assim, ao se considerar a ou as realidades escolares, deve-se ter em mente que os sujeitos que integram a comunidade escolar são marcados por históricas distintas, cujos contornos delineiam-se através de fatores de natureza biológica e social. Embora a maioria das considerações sejam voltadas para o alunado, também os educadores – professores, especialistas, atendentes, etc. – têm suas histórias de vida demarcadas por fatores de natureza orgânica e social ou cultural.

Para Vygotski, as duas linhas básicas determinantes do desenvolvimento humano, desta maneira, a biológica e a cultural, precisam ser adequadamente consideradas dentro da psicologia e da educação. A psicologia de sua época ou tendia a explicar o comportamento humano através de uma compreensão subjetiva e idealista, em que nada podia ser objetivado ou explicado do ponto de vista causal, ou buscava explicar o comportamento humano através das associações desencadeadas por relações de estímulo e resposta, porém em uma base extremamente linear e restrita à esfera biológica ou orgânica. Tanto uma como outra abordagem excluíam (no que residia a crítica vygotskiana fundamental) o entorno social e cultural do indivíduo. Para Vygotski, entretanto, o comportamento humano somente poderia ser adequadamente compreendido caso as duas dimensões – biológica e cultural - fossem incluídas.

A melhor forma de entender o entrelaçamento entre ambas dimensões se dá quando se considera a situação de pessoas portadoras de deficiência, já que os estados de carência orgânica e as correspondentes implicações no âmbito cultural põem em relevo o papel desempenhado por cada uma delas. Para Vygotski, o contraste das duas dimensões pesa em favor do prejuízo resultante do isolamento social a que essas pessoas são costumeiramente submetidas. Justamente aí reside a necessidade maior de apoio externo, além, evidentemente, do suporte às carências orgânicas específicas (por exemplo, para o surdo, o domínio e uso da língua de sinais, para o cego, a escrita braille, etc.).

Por isto, desde cedo, já na década de 20, Vygotski defendia veementemente a idéia do atendimento educacional de crianças com deficiência na escola regular.7 Possivelmente não haja autor da psicologia e da educação que tão precocemente tenha defendido a não exclusão das crianças, adolescentes e adultos com deficiência, do convívio social, na escola, inicialmente, e, depois, nas esferas mais amplas da vida comunitária.

Ilustro a importância do pensamento integrador no trabalho de Vygotski, com uma pequena história, vivida recentemente por mim em uma defesa de projeto de mestrado de uma de minhas orientandas de pós-graduação. Compuseram a banca examinadora, além do orientador, duas professoras, uma da casa e outra convidada. No decorrer dos comentários desta última, posicionando-se frente ao trabalho de Vygotski, fez a seguinte afirmação, que deixou a todos que a ouviam (muito mais ao orientador e à orientanda), estupefatos: “Vygotski foi um anti-inclusivista!”

Quem sabe numa tentativa de resposta a esta colega, a seguinte citação do “anti-inclusivista” Vygotski (1997, p. 93) ilustra bem a importância por ele dada à integração escolar:

Por suposto que certos elementos do ensino e da educação especiais devem conservar-se na escola especial ou introduzir-se na escola comum. Porém, como princípio, deve ser criado o sistema combinado da educação especial e comum (...) A outra medida consiste em derrubar os muros de nossas escolas especiais. (...) O ensino “especial” deve perder seu caráter “especial” e então passará a ser parte do trabalho educativo comum. Deve seguir o rumo dos interesses infantis. A escola auxiliar, criada apenas como ajuda à escola normal, não deve romper nunca nem em nada (cursivo no original) os vínculos com ela. A escola especial deve tomar com freqüência por um período aos atrasados e restituí-los de novo à escola normal. Orientar-se pela norma, desterrar por completo tudo o que agrava o defeito e o atraso – este é o objetivo da escola. Não deve ser vergonhoso estudar ali e sobre suas portas não deve estar escrito: “Perdei toda esperança os que aqui entrais.”

Quem sabe a forma mais apropriada de se dimensionar o pensamento de Vygotski, em relação às considerações sobre a educação inclusiva de crianças com necessidades específicas, seja a partir do seu pensamento social. De forma inversa, alguns interpretam que a teoria sócio-histórica foi construída por Vygotski a partir da sua experiência docente com crianças com tais necessidades. Ele entendia que estas pessoas não se diferenciavam qualitativamente das ditas normais, configurando uma forma diversa de se desenvolver, aprender ou referenciar-se culturalmente. Pelo contrário, os significados culturais permaneceriam como referências comuns para todos os sujeitos sociais9, independentemente das condições individuais. Decisivas seriam, entretanto, as formas de acesso e apropriação dos significados culturais, resultando em semânticas individuais ou sentidos particulares dos mesmos.

Continuando seu pensamento, conforme explicitado no capítulo 3 (Acerca de la psicología y la pedagogía de la defectividad infantil) do Volume V das Obras Escogidas, não haveria diferença essencial na estrutura psíquica e na forma de aprendizagem entre pessoas cegas ou surdas e as “normais”. O cego teria condição de alfabetização e conseqüente domínio da leitura e da escrita como as pessoas videntes, apenas que através de outro recurso de escrita, representado pelo código braille. Para Vygotski, mais importante do que os signos seria a possibilidade do acesso aos significados, podendo este se dar através dos mais variados signos, ou caminhos de apropriação dos significados. Por que isto seria tão importante para Vygotski? Porque desta maneira o indivíduo estaria estabelecendo uma circularidade constante com os significados e valores sociais, tese de fundamental importância para seu pensamento, já que seria desta forma que toda criança passaria de ser biológico para ser social e, assim, capaz de construir estruturas mentais cada vez mais complexas.

Assim, quando ele analisava a situação de pessoas privadas, por contingências as mais variadas, em relação à possibilidade de acesso aos significados culturais, perpetuar tais privações seria o derradeiro handicap, e não os próprios estados orgânicos. A partir desta abordagem, pode-se compreender porque para Vygotski era fundamental que se preservasse ou se promovesse as condições mais plenas de acessibilidade e trânsito social para crianças potencialmente ameaçadas, pelos seus estados individuais, de segregação ou não interação com os significados culturais compartilhados pelo grupo social. E por isso sua ênfase tão clara na importância de espaços escolares e sociais o menos demarcados institucionalmente – e, portanto, potencialmente segregadores – para crianças com necessidades especiais.

Por isso, Vygotski afirma de forma tão reiterada e enfática, conforme o texto citado acima, de que o lugar mais legítimo para todas as crianças, também as com necessidades especiais, é na escola regular. A escola especial correria o risco de criar e perpetuar a cultura do déficit, em que os significados das identidades – individuais e sociais – encontrar-se-iam ou em um estado de acentuada difusidade, ou velados – por atitudes de superproteção, comiseração, rejeição, etc. Também seria inadequada a imposição de modelos, valores ou referências culturais, que não viabilizassem ao sujeito sua própria síntese cultural, num espaço o mais amplo ou democrático possível de intercâmbio social e cultural.

Uma segunda razão para Vygotski defender a importância da convivência social da criança com necessidades especiais em situações de heterogeneidade e de riqueza de trocas sociais está no próprio fundamento de sua teoria sócio-histórica, ou seja, é precisamente na amplitude das relações interpsicológicas que a criança encontrará solo fértil para o desenvolvimento das estruturas intrapsíquicas do pensamento e da linguagem. Imagine-se o que significaria a convivência predominante da criança em situações grupais de homogeneidade, em escolas ou classes especiais, em termos da idéia acima. Possivelmente os horizontes de aprendizagem e de terminalidade escolar seriam tão restritos para alunos com necessidades especiais devido exatamente ao estabelecimento de círculos homogêneos de convivência escolar. A idéia da integração escolar, defendida por Vygotski, conforme seus textos deixaram antever, viria a prevenir tal situação.

3 – Proposta metodológica e resultados preliminares

Conforme foi anunciado brevemente na introdução deste artigo, constituem espaço desta pesquisa três escolas cujos projetos político-pedagógicos delineiam-se favoravelmente à proposta da educação inclusiva. Para tanto, foram convidadas e envolvidas na pesquisa uma escola pública estadual, no município de Santa Maria (RS), uma pública municipal, em Porto Alegre (RS), e uma escola particular, no município de Novo Hamburgo (RS).

Sujeitos participantes da mesma são professores, pais e alunos destas escolas. A abordagem metodológica é qualitativa, através da pesquisa-ação. Propõe-se uma postura de diálogo com a comunidade escolar, buscando conjuntamente a elaboração de estratégias de ação que favoreçam a execução da proposta de inclusão escolar.

Passo a discutir alguns dos resultados já obtidos – durante o 2º semestre de 2003 - com os professores de duas das escolas (10 professores na escola particular e 10 professores na escola estadual) acima mencionadas, a partir das questões de entrevista propostas10. Inicialmente, as respostas dos professores da escola particular foram analisadas, destacando-se os aspectos que se seguem. Em relação à primeira questão, cito breves trechos de algumas falas, para um “conhecimento in loco” das respostas.

a) “... estar diante de um novo desafio.”

b) “As questões referentes à inclusão sempre provocam reações de insegurança ... É necessário muito estudo e observação.”

c) “... confesso que fiquei muito apreensiva ... constantemente ainda solicito ajuda da equipe pedagógica da escola.”

Agrupei as afirmações mais freqüentes dos professores nos seguintes sentimentos ou atitudes: sentimento de desafio; desconhecimento a respeito; sentimento de ansiedade e insegurança; busca de apoio pedagógico.

Em relação à segunda questão, constam abaixo algumas afirmações que me pareceram mais sugestivas.
a) “Como um caminho onde não será permitido o retorno.”

b) “Um caminho a ser trilhado ... mas com muitas ‘pedras’ e desafios impostos pela falta de informação e de uma formação especial.”

c) “Acredito muito nesta proposta, uma vez que aprendemos na interação com o outro, respeitando as diferenças de cada um. Penso que a inclusão precisa ser planejada com seriedade, incluindo serviços de apoio.”

d) “... abre as portas da escola para todos, pois todos têm direito à educação e socialização.”

As respostas apresentadas podem ser resumidas da seguinte forma. Os professores definem o projeto da educação inclusiva como: uma proposta educacional “irreversível”; uma “democratização” do ensino, do acesso à escola; “cultura inclusiva”; um “caminho” (“sem retorno”, “com muitas pedras”); um projeto com demandas direcionadas à transformação da escola.

Para a terceira questão, elegi para ilustração as seguintes respostas dos professores:

a) “Sei muito pouco sobre o assunto, não tenho experiência, me guio basicamente pela minha observação, sensibilidade e pelo pouco conhecimento que tenho de alguma literatura especializada.”

b) “Acredito que tenha uma grande caminhada pela frente. Como já disse, é necessário estudar, buscar, observar para entender cada uma dessas crianças.”

c) “Não temos conhecimentos suficientes para recebermos adequadamente os diversos comprometimentos que temos em nossas escolas. Acho que nunca estaremos prontos, mas é com grupos de debates, de estudos entre profissionais da área e também de especialistas que conseguiremos avançar nesse processo.”

Destaco as seguintes posturas dos professores a partir de seu espaço de experiência e de formação profissional. Tendo em vista atender a demanda decorrente da proposta da educação inclusiva, os professores acentuam: o valor das experiências acumuladas; sentirem-se despreparados, ou “leigos” em relação à proposta; disporem de pouco formação específica; disporem de pouco conhecimento; a importância da formação continuada; a importância da prática (similar ao primeiro aspecto destacado acima); a necessidade de unir a prática à teoria.

Em relação à quarta questão, destaco algumas afirmações:

a) “Acho que para ocorrer a inclusão, o professor sempre precisa do suporte da equipe diretiva e de profissionais ligados à área. Reuniões sistemáticas para trocar idéias e apontar novos encaminhamentos.”
b) Primeiramente, o que mais pode contribuir é, sem dúvida, um suporte teórico para os professores, focando os diferentes tipos de crianças com necessidades especiais. A infra-estrutura da escola também deve estar de acordo com as necessidades. As informações a respeito dos alunos com necessidades especiais devem ser divulgadas e serem de domínio de todos os profissionais que trabalham com esses alunos. As informações devem ser muito bem trabalhadas com os colegas e familiares das turmas com inclusão.”

c) “Trabalho com a comunidade escolar, principalmente pais, que muitas vezes resistem aos colegas incluídos que os filhos têm; até mesmo por ignorância no assunto. Encontros com outros colegas do mesmo ciclo, ou que tenham alunos com comprometimentos similares, para que juntos possam trocar informações, buscar estratégias. Sugestões de literaturas sobre o assunto específico. Ser comunicado com antecedência sobre os alunos de inclusão do próximo ano letivo, para que seja possível a busca de dados anteriores e informações que contribuirão para o trabalho em sala de aula.”

As afirmações dos professores dão, como aspectos fundamentais para um processo positivo de inclusão escolar, os seguintes destaques: adaptação das escolas e preparo dos professores; participação da comunidade escolar e conscientização do projeto de inclusão; apoio da equipe pedagógico e composição favorável da infra-estrutura escolar; rede de apoio, que inclui também os especialistas; intercâmbio constante entre os professores.

Na última (quinta) questão apresentada, algumas das respostas foram:

a) “Penso que colocar alunos, sem estruturas e recursos, somente para dizer que estamos a favor da inclusão ... não resolve. É preciso haver comprometimento de recursos, viabilizar e qualificar sempre os profissionais que atuam ... com esses alunos. Principalmente em escolas públicas, vejo um aglomerado de alunos, ou, melhor dito, ‘depósitos’, sem que a escola esteja preparada. É preciso união da comunidade, respeitando os direitos de todos, é preciso recursos de qualificação e materiais nas escolas para que esses alunos sintam-se realmente incluídos na sociedade em que vivem. É preciso também que os próprios colegas de classe tenham ... entendimento para poder contribuir com esses colegas em sala de aula e na escola, e não deixá-los à margem.”

b) “No atual momento, como já afirmei, acredito que seria necessário à escola organizar-se, no sentido de dar suporte aos professores para atender o número cada vez maior de crianças com necessidades específicas.”

c) “Vontade política para a proposta realmente se efetivar, verbas e integração da saúde com a educação.”

Nas respostas apresentadas, os pontos mais débeis para viabilização do projeto de inclusão escolar foram destacados pelos professores da seguinte maneira: a falta de oportunidades para troca com colegas e especialistas; recursos humanos e materiais insuficientes; conscientização ainda débil da comunidade escolar sobre o projeto de inclusão escolar; a ausência de projetos sustentáveis de formação continuada; vontade política e verbas insuficientes.

Os 10 professores da escola pública estadual, distribuídos nas séries do ensino fundamental, pelo currículo por atividades e por área de estudo, apresentaram os seguintes aspectos, que listo abaixo, todos eles como resposta às cinco questões apresentadas:

· a importância da formação continuada dos professores;

· a necessidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA) para alunos mais velhos;

· o grande número de alunos em sala de aula como aspecto desfavorável;

· a existência de pouco tempo para que os professores preparem suas atividades com qualidade;

· o projeto de educação inclusiva definido como um “mal necessário”;

· a dependência da “boa vontade” dos professores;

· um certo “mal-estar” inicial, porém com apoio externo a situação em sala de aula passou a se tornar positiva;

· é importante que as turmas de inclusão sejam menores;

· a importância dos intercâmbios entre professores, educadores especiais e os professores das salas de recursos.

Conclusão

Concluo este texto não podendo deixar de apontar para o que parece ser o óbvio, ou seja, de que estamos diante de uma situação de muitas incompletudes e perplexidades diante da demanda que resulta, a meu ver, da priorização em lei (LDB 9394/96) de um projeto político-pedagógico- o da educação inclusiva - que não nos possibilita vislumbrar, ainda, formas exeqüíveis de implementação bem sucedida. Podemos, como tantos outros, sonhar, defender uma utopia, estabelecer metas que signifiquem a gradual metamorfose de educadores, escolas, famílias e alunos em sujeitos ativos, participantes, criativos no processo de inclusão de alunos com necessidades especiais no sistema regular de ensino.

As falas dos docentes ouvidos anunciam e denunciam dificuldades, frustrações, temores, porém também a esperança de que, através dos vários intercâmbios a serem estabelecidos entre professores, pais, alunos, e outros sujeitos do espaço escolar, avanços e transformações possam ser produzidos, gerando-se uma inclusão escolar possível.



Referências bibliográficas

Banks-Leite, L. Galvão, I. (Orgs). A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez, 2000.
Beyer, H. O . Educação especial: Uma reflexão sobre paradigmas. In: Reflexão e ação. Santa Cruz do Sul: Unisc, v. 6, nº 2, jul/dez 1998, p. 9-22. 
Beyer, H. O . Integração e inclusão escolar: reflexões em torno da experiência alemã. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 8, nº 2, jul/dez 2002, p. 157-168.
Bleidick, U. Lernbehindertenpädagogik. In: Bleidick, U. Hagemeister, U. Kröhnert, O . Pawel, B. Einführung in die Behindertenpädagogik. Stuttgart: Kohlhammer, 1981.
Foucault, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
Naujorks, M.I. Stress e inclusão: indicadores de stress em professores frente à inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais. In: Cadernos de Educação Especial, Santa Maria, p. 117-125, nº 20, 2002.
Vygotski, L.S. Obras escogidas V – Fundamentos de defectología. Madrid: Visor, 1997.

Notas:

1 Destacam-se as desenvolvidas nas cidades de Berlim e Hamburgo.

2 Compõem o GEPEI e participam da pesquisa as seguintes pesquisadoras: Fabiane Costas (Drª/UFSM); Olga S. Herval Souza (Drª/FADERGS); Ana Vilma Tijiboy (Drª/NAPNES-UFRGS); Ulrika Arns (Doutoranda UFRGS/UERGS); Andréa Tonini (Ms/UFSM); Luisa Hogetop (Ms/NAPNES-UFRGS); Cíntia Teixeira (Ms/URI); Ângela Coronel (Ms/SMED-São Leopoldo, RS); Maristela Ferrari (Mestranda UFRGS/SMED-Novo Hamburgo, RS); Mônica Pagel Eidelwein (Mestranda UFRGS/FEEVALE); Márcia B. Cerutti Müller (Mestranda UFRGS/FEEVALE); Ângela Vigolo (NAPNES-UFRGS).

3 Os países de língua anglo-germânica fixaram-se em um conceito ontogenético da deficiência. Pensamos, aqui, particularmente nas expressões na língua alemã, em que para cada prefixo definidor da deficiência segue-se o substantivo deficiente(s). Assim, por exemplo, surgem as palavras Geistig(=mental)behinderte(=deficiente), Sprach(=fala)behinderte, Lern(aprendizagem)behinderte, dentre outras. Inclusive a educação especial (sem esquecer que há neste país um significativo movimento de integração escolar) ganha diferentes denominações, sendo uma delas a Behindertenpädagogik, isto é, a pedagogia dos deficientes.

4 A respeito da discussão dos paradigmas, veja o artigo Educação especial: uma reflexão sobre paradigmas. In: Reflexão e Ação. UNISC, 1998. 

5 A este respeito, veja o artigo Integração e inclusão escolar: reflexões em torno da experiência alemã. In: Revista Brasileira de Educação Especial, 2002. 

6 Pensa-se, aqui, nos contextos escolares da escola regular, da escola especial, e das escolas regulares com experiências de educação inclusiva. 

7 Veja, a respeito, o vol. V das Obras Escogidas, 1997.

8 Tradução livre do texto original, em espanhol.

9 Não pensamos, absolutamente, em um padrão cultural normativo ou dominante, já que um determinado grupo social pode ser composto por várias culturas, raças, etnias, identidades, etc., sendo que os significados culturais são marcados pelas matizes correspondentes. 

10 As cinco questões apresentadas são as seguintes: 1) Qual foi seu primeiro contato com a idéia/proposta da educação inclusiva? E sua primeira reação? 2) Como você a define? 3) Como você avalia sua condição profissional (experiência, formação, etc.) para adaptar sua atuação docente às características de uma educação inclusiva? 4) Que aspectos você aponta como imprescindíveis para viabilizar na dinâmica escolar a proposta da educação inclusiva? 5) Quais os aspectos que você apontaria como mais débeis, no atual momento, no processo de inclusão escolar de alunos com necessidades especiais?

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